Estudei para isso e sei que posso fazer a diferença
Por Luana Guedes, em relato a Bruno Romano
O celular que permitiu essa troca de mensagem passa o dia todo dentro de uma capa de proteção dentro do hospital. À noite, a médica anestesista
Luana Guedes, 43, acessa rapidamente na sua casa algumas mensagens e limita seu uso para focar a atenção na sua família. Luana é mãe de Sofia, 18, e trabalha diariamente no Instituto do Câncer, um dos hospitais do complexo do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo (USP). Participante do FEAL da OBB e parte ativa da comunidade Bounder, assim como sua filha, ela compartilha a seguir um relato das últimas semanas, colocando à prova sua vocação pelo cuidado com as pessoas e os aprendizados que tem aflorado a cada novo dia.
A médica anestesista Luana Guedes com sua fliha Sofia no Pico dos Três Estados – Serra da Mantiqueira.
“Como médica anestesista estou em uma das áreas mais expostas: ao intubar pacientes entramos na linha de frente das gotículas que transmitem o covid-19.
Anestesistas são uma das especialidades mais adaptadas a cuidar de um paciente de UTI depois dos intensivistas, pois aprendemos isso durante a residência, apesar de ser fora da nossa zona de conforto.
Tenho asma, o que me torna população de risco. Mas estudei para isso e sei que posso fazer a diferença. Escolhi confiar nos procedimentos de precaução e a aceitar que o risco faz parte da nossa existência.”
“Com o início da pandemia no Brasil precisamos nos antecipar e desenhar protocolos para realizar tudo isso com segurança e rapidez, treinando o maior numero de colegas não anestesistas possível, a fim de estarem preparados a assumir essa função quando o vírus se espalhasse (já aconteceu: temos sexto-anistas e recém-formados tendo que se virar).
Organizamos uma rede de disseminação de informações e vídeos de treinamento para compartilhar dados com outros hospitais.
Os pacientes ficam muito graves na parte do pulmão, e temos de fazer tudo muito rápido, ao mesmo tempo em que as medidas de precaução levam a uma complexidade maior nas rotinas e procedimentos.
“Você se desgasta fisicamente. O equipamento de proteção machuca. O rosto fica marcado, a estrutura causa dor de cabeça de tanto pressionar as orelhas e a testa. E esse monte de camadas sobre a face dá sensação de falta de ar. As mãos ficam irritadas de tanto lavar e passar álcool, e continuamos repetindo esse procedimento.
Dá consciência pesada com a quantidade de luvas e outros materiais descartáveis que usamos – aumentou muito a quantidade de lixo que produzimos.
Dá medo também: de se contaminar, de contaminar os colegas ou a família. De morrer. Temos colegas de trabalho doentes.
E a gente continua…
Faz o que precisa ser feito, de novo e de novo.”
Essa situação toda fica melhor de lidar para quem fez um FEAL. Resiliência, poder de adaptação, organização, trabalho em equipe, liderança. São habilidades que valem ouro hoje.
Luana Guedes em círculo com os Bounders e Instrutores do seu FEAL na Chapada dos Veadeiros.
“Tive a fase de deixar minha filha afastada, morando sozinha no apartamento vazio da minha mãe. Acabamos desistindo e assumindo o risco de morarmos juntas.
Tem coisas maravilhosas da quarentena também. Muito desapego de hábitos que não acrescentam. Mais tempo em casa. Conversas, jogos de tabuleiro e do arco da velha, como mímica e stop. Filmes, séries, jantares preparados juntos, treino montado na sala e na escadaria do prédio e realizados em família. Videoconferência com amigos e familiares.
Foi um incentivo para o meu noivo morar em casa, e é uma descoberta extraordinária explorar como conseguimos ter uma rotina incrível e harmônica a três numa fase em que tantas pessoas estão estressadas e brigando. Descobrimos que o assunto entre nós não acaba nunca e que nos fazemos rir.
Eu também me aproximei do meu irmão e da minha cunhada, que adquiriram o hábito de preparar marmitinhas para nós. Um amigo também deixa umas coisas gostosas em casa.”
Estamos todos nos redescobrindo e teremos que nos reinventar para persistir, então acho que minha experiência com aprendizagem experiencial tem um papel impactante demais.
Sou Bounder, minha filha é Bounder e meu noivo quer levar as filhas dele para fazer um programa quando retomarem as atividades, ele é fascinado pelo que eu conto. Não vemos a hora.